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sábado, 14 de agosto de 2010

Democracia, populismo, desenvolvimentismo e crise institucional

A partir de 1946 o Brasil ganhou uma nova Constituição que, no essencial, contemplava os requisitos do que a maioria dos cientistas políticos reconhece como sendo uma democracia clássica no sentido da palavra. Competição política, pluralismo partidário, eleições diretas, separação formal dos poderes do Estado, razoável direito de contestação pública, faziam secundárias as distorções de inércia herdadas do regime anterior, o Estado Novo. Com efeito, a inércia a que nos referimos explica uma transição marcada pela apatia das massas, pelas exigências democratizantes de além fronteira e que, por não haver reciclado a elite do regime anterior, incorrera na sobreposição das novas regras à velha estrutura de poder, mantendo intacto o sistema sindical corporativista e o perfil de uma burocracia estatal concentradora do poder decisório. (Souza.1976:105)
Não bastando a limitação das franquias democráticas, o modelo político de 1945 conseguiu captar a complexidade da sociedade brasileira via sistema partidário. Um partido de trabalhadores (PTB), um partido das camadas médias urbanas e empresariais moderna (UDN) e um terceiro, com penetração no meio rural e na parte menos desenvolvida do país (PSD). A competição política, em que pese tentativas de interrupção da democracia, sobreviveu por vinte anos.
Foi nesse ambiente, de fragilidade do consenso e da democratização, que a intelectualidade brasileira estreou suas lutas, aderindo, voluntariamente, as causas populares. Alguns à esquerda, saíram do liberalismo da UDN para em seguida entrarem, majoritariamente, no Partido Socialista Brasileiro ao tempo em que outro segmento, mais radicalmente comprometido com o socialismo e menos com a democracia, firmava posição dentro do Partido Comunista — declarado ilegal e 1947 e com os parlamentares cassados em 1948. Daniel Pécaut em estudo sobre os intelectuais da geração 1954-1964, analisando esse contexto declara:
"... o ardor democrático dos intelectuais de 1945 tinha poucas chances de durar. Tendo admitido, por cálculo ou impotência, o aspecto corporativista do regime, pouco inclinados aos prazeres da política partidária e, além disso, pouco instrumentados para tomar parte nela, não tinham motivos para celebrar as virtudes da "democracia formal" que de qualquer forma nunca exaltaram assim. " (Pécaut. 1989: 99).
Para essa elite pensante, o aperfeiçoamento democrático em curso era apenas um tema subordinado a questão nacional que agora, diferente do período 1925-1940, estaria definitivamente gravitando em torno do reconhecimento da existência concreta da nação brasileira, do caráter e da personalidade acabadas de seu povo, e do direito inalienável ao progresso econômico e social. Agora não se tratava mais de buscar a identidade do oprimido frente o opressor, mas de mobilizar as massas para o confronto que afirma e defende a soberania nacional indispensável ao desenvolvimento.
Com essa orientação, a intelectualidade tinha a clara percepção de que sua opção, ao privilegiar o mercado interno, contrariava interesses estabelecidos dentro e fora do País, não lhe restando outra escolha que não o apelo às massas urbanas para dar sustentação a um projeto abrangente e politicamente definido. Coube ao ISEB, criado em 1955, produzir esse projeto. (PÉCAUT,1989. BIELSCHOWSKY, 1988). O diagnóstico da realidade brasileira a ser transformada pela ação do planejamento estatal, com o apoio das massas, inspirava-se na contribuição teórica da Cepal. Essa entidade já havia desenvolvido, para toda a América Latina, estudos e conceitos encadeados para dar sustentação teórica a um modelo econômico condizente a proposta de industrialização das economias da região. Conceitos como deterioração dos termos de troca, baixa elasticidade da demanda do exterior por produtos do setor primário; desemprego estrutural; desequilíbrio no balanço de pagamentos; inflação estrutural e vulnerabilidade aos ciclos econômicos — eram interligados num discurso que se espalhou no universo acadêmico e político, sustentando a defesa do planejamento e da industrialização da economia. (BIELSCHOWSKY, 1988:26).
O impulso para a industrialização veio com o retorno de Vargas, em 1950, pelo voto direto. O desejo de autonomia econômica, entretanto, despertaria tensões sociais e protestos junto às classes tradicionalmente ligadas ao comércio de exportação e importação, não tanto pela industrialização em si, mas e principalmente devido a ameaça aos privilégios que chegava com a emergência de uma nova estrutura social. (Skiidmore.1979). Seguem-se os conflitos, tensões e golpes planejados ou abortados, o que não impede a eleição e a posse traumática de Juscelino Kubitschek, com o rótulo do nacional desenvolvimentismo e a promessa de realizar "cinqüenta anos de progresso em cinco".
Desta vez o ISEB — "agora Meca da pesquisa e do ensino de problemas brasileiros" (Skidmore. 1979: 211) — encontra o seu momento, sua hora e a sua vez, para lançar uma série de livros e publicações sobre as causas do subdesenvolvimento e as formas de sua superação. Entrava o Brasil num período de crescimento sem precedentes no século XX para o conjunto dos países capitalistas do Ocidente. A renda per capita brasileira viria sustentar-se ao longo da década de 50 em nível três vezes maior do que o resto da América Latina. A respeito dos anos JK é bom ouvir o que Skidmore tem a dizer sobre o desempenho da economia:
"Entre 1955 e 1961, a produção industrial cresceu 80% (em preços constantes), com as porcentagens mais altas registradas pelas indústrias de aço (100%), indústrias mecânicas (125%), indústrias elétricas e de comunicações (380%) e indústria de equipamentos de transportes (600%). De 1957 a 1961, a taxa de crescimento real foi de 7% ao ano e, aproximadamente, 4% per capita." (Skidmore.1979: 204)
Esse processo de industrialização, uma trajetória que remonta, com já referido, a revolução de 1930 é, na segunda metade dos anos 50 e primeira dos 60, fator primordial das tensões decorrentes do avanço do capitalismo brasileiro e das mudanças na estrutura social. Nos anos 60, a participação da indústria no PIB (26%) quase se equiparou com a agricultura (28%). O país transforma-se de economia agrária exportadora, em agrária industrial com todas as mazelas e demanda acarretada por uma intensa migração do campo para a cidade. Um processo em que brasileiros esquecidos nos lugares mais remotos, chegavam a grande cidade para conhecer novos padrões de consumo, instrução, amparo social limitado, mas também desemprego, miséria, violência e discriminação. Estas são as razões que fazem do populismo um jogo perigoso, um jogo de mão dupla. Se havia interesse do Estado na emergência política das classes populares, esse mesmo Estado sofre, via mercado, as pressões decorrentes desse processo. De um lado precisa das massas trabalhadoras para seu projeto político nacional-desenvolvimentista. Mas de outro, precisa controlar essas massas trabalhadoras de forma a atender a estratégia da acumulação com o aumento da lucratividade e dos níveis de poupança do setor privado. Este conflito encontra em Wefforf uma advertência:
"Seria ingênuo supor que somente para atender as necessidades de seu jogo interno, o Estado tivesse inventado uma nova força social". (Weffort. 1978: 71)
De acordo com Weffort o poder de manipulação do governante e a passividade das massas era um fenômeno social aparente. A incapacidade de representação associada a suposta passividade das massas, contagiava também o grupo dominante que, fragmentado nos seus interesses, não consegue fazer-se representar. Essa é a razão porque a tutela de um Presidente que centraliza o poder e manipula é aceita por oprimidos e opressores. Heterogeneidade de interesses e conflitos inter e intra classes é o resultado desse fenômeno brasileiro que termina por revelar o populismo como uma falsa solução. Trata-se, portanto, de uma ambigüidade das relações classe x governo e classe x classe. São relações individuais infensas a qualquer forma autônoma de organização. Vejamos de novo o que Weffort tem a dizer:
"Desse modo, a manipulação é uma relação ambígua, tanto do ponto de vista social como do ponto de vista político". (Weffort. 1978: 74)
A lógica dos fatos vem comprovar, no entanto, os limites da manipulação populista. Pois enquanto a economia cresceu, houve acumulação e pôde o Estado atender, no interesse dessa mesma acumulação e de sua sustentação política, a demanda dos trabalhadores. Contudo, tão logo se esgota o ciclo de expansão da economia brasileira, essa demanda extrapola a capacidade de atendimento do Estado, abrindo as portas para uma verdadeira mobilização política popular. (Weffort.1978) Com isso, instala-se o conflito que combinado à precária institucionalização da democracia (uma dívida do populismo) converge para o impasse e a ruptura. É o advento dos governos militares e da fase de modernização conservadora quando o país, superados os ajustes da segunda metade dos anos 60, adentra os 70 com um crescimento reconhecidamente acelerado.

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